O Brasil dos brancos: a negação como formadora da identidade sociopolítica

A negação e o ódio que a parcela mais branca e mais abastada de nossa sociedade nutre em relação ao PT deriva de um momento de crise desse nosso estrato social que, não se enxergando mais como negro, ainda não formatou uma identidade sociopolítica que o permita se integrar ao Brasil.

brancos manifestação
Manifestação em Bauru – São Paulo em 2013

O Brasil sempre foi o que a parcela branca do povo brasileiro imaginou ser. Não poderia ser de outra forma, já que a parcela branca da nossa sociedade, desde sempre, exerce o poder econômico e político.

Interessante que se querendo como brancos tenham construído identidades que nos apresentavam, enquanto brasileiros, como índios inicialmente e como negros posteriormente.

Jamais se permitiu, no entanto, que a superioridade branca subjacente a essas identidades, e suas prerrogativas de poder, fossem colocadas em questão.

O Brasil é um país que tardiamente formou seu sentimento nacionalista. Isso ocorre somente após a abdicação do Imperador Pedro I em 1831. Essa abdicação, que tinha como pano de fundo a rejeição à sua origem portuguesa, e eventos posteriores como a Guerra do Paraguai – 1864, levaram nossos intelectuais de então a imaginar uma identidade nacional brasileira. Cito aqui de memória o professor Luís Cláudio Vellafañe G.Santos em seu livro “O dia que adiaram o carnaval”.

Mas a construção dessa identidade se deu pela negação do outro.

Nós somos os índios.

Independentes totalmente da Coroa Portuguesa, quem eramos os brasileiros?

Os brasileiros, éramos os que não eram portugueses e que também não eram nossos vizinhos do Vice-Reino da Prata.

Quando ouvimos um Galvão Bueno bradar “ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é melhor”, ouvimos ecos dessa construção da identidade nacional pela negação do outro.

Mas que imagem nos representaria?

Os índios; éramos os Peris apaixonados, os bravos I-Jucas Piramas e os Policarpos Quaresmas patéticos e idealistas no seu nacionalismo.

Icônico disso é o belíssimo monumento equestre da Praça Tiradentes na cidade do Rio de Janeiro, onde em cada lado de seu pedestal a imagem helênica de um índio guarda um dos grandes rios que delimitam nosso território.

indio

Óbvio que o tomarmos para nós a identidade de índios não nos levou a incluí-los em nossa sociedade formal. Continuaram a ser massacrados.

Mas essa identidade de índios nos trouxe como brasileiros até a primeira metade do século XX.

Nós somos os negros e os pobres.

Então, pelos ido dos anos 60, o samba e o futebol já haviam se tornado característicos do que nos individualizava; e nossos intelectuais haviam descoberto a África e Che Guevara.

Todo o questionamento social surgido nessa época, mais a necessidade de resistência à ditadura recém implementada no país, leva a imagem do índio a não mais representar o que nos distinguia de outros povos; descobrimo-nos um povo mestiço, mulato e subdesenvolvido.

A noção terceiro-mundista foi adotada por nossa intelectualidade para negar a ideia ufanista do “Brasil Grande” dos generais; tornamo-nos negros e pobres.

Daí o apego persistente à construção teórica da casa grande e da senzala convivendo em uma democracia racial como nosso mito fundador.

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Brasil campeão do mundo de futebol em 1958 – Pelé, Gilmar e Didi

E nesse ponto, a população miscigenada, o fato de casais inter-raciais não representarem um tabu e a existência de espaços públicos de convivência – onde a praia e os estádios de futebol são seus melhores símbolos, deram consistência a essa construção da identidade nacional.

“Porque o samba nasceu lá na Bahia e se hoje ele é branco na poesia, se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração”. Versos de “Samba da Benção” de Vinícius de Moraes e Baden Powell.

As religiões de matriz africana passam a ladear a religião católica, seus cantos são gravados em disco como música popular, brancos de classe-média frequentam terreiros de umbanda.

“Nessa cidade todo mundo é de Oxum, homem, menino, menina, mulher”.

Claro está que quem conhece um mínimo do “brasileiro cordial” sabe que fora dos espaços idealizados “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, como nos lembra o Rappa.

Ou seja, mesmo ora imaginando-se como índio, ora imaginando-se como negro, o brasileiro branco jamais questionou sua condição de comando e prevalência.

O Povo brasileiro.

Em aparente contradição, se como imagem de povo a nacionalidade se apoiou na imagem do índio e do negro, enquanto individualidade, sempre a figura do branco foi buscada como ideal.

O professor Darcy Ribeiro tem como seu canto de cisne uma obra seminal, “O povo brasileiro”. Nela descreve a formação de 5 Brasis. Vou me ater ao que me é mais próximo, o “Brasil caipira”. E, a partir dele, tentar fazer alguma analogia com os outros Brasis.

Nessa categoria, Darcy Ribeiro teoriza a formação do paulista a partir do branco português e do índio; ou seja, o paulista (tecnicamente, o vicentino, o habitante da Capitania de São Vicente do qual surgirá o paulista; mas também o mineiro e parte do povo do Paraná, Mato Grosso e Goiás) é, na sua origem, um mestiço mameluco. A entrada da vertente negra na formação do povo paulista é tardia, passa a ser significativa somente com a introdução da monocultura do café, a partir do século XIX.

O paulista era um povo que necessitava se definir, queria ser branco português, mas não era aceito como tal. Ao mesmo tempo, recusava-se a se identificar como índio.

Negava, portanto, o que era e era negado pelo que queria ser. Essa negação pelo modelo almejado não o revolta, senão, o torna subserviente a esse modelo na busca de sua aceitação.

O paulista mameluco queria se como branco.

Outra vertente na formação do povo paulista, essa não tratada pelo professor Darcy, foi a contribuinte das migrações e das imigrações. O dilema se mantém; porém, aqui há uma diferença fundamental entre o filho do imigrante estrangeiro e o filho do migrante, notadamente o nordestino.

Migração e imigração em São Paulo – à esquerda, imigrantes italianos; à direita, migrantes nordestinos

E essa diferença se origina na política de embranquecimento adotada pelo governo brasileiro que tinha como intenção trazer imigrantes europeus – a chegada dos imigrante europeus era bem-vista e bem-vinda – para aumentar a população de pessoas brancas no Brasil e pela miscigenação ir paulatinamente “purificando” o sangue preto e inferior pela mistura com o sangue branco, esse tido como superior – segundo o que propunha as ideias do racismo científico que foram consideradas válidas por figuras expoentes da nossa intelectualidade de 1870 a até pelo menos 1930; e até hoje perduram no nosso inconsciente coletivo.

Ocorre que isso faz com que o filho do imigrante nascido no Brasil, mesmo que vindo de famílias muito pobres, não pudesse se identificar com o ser brasileiro – paradoxalmente, seu país nascença – o Brasil – é para ele inferior e mais escuro do que ele próprio se enxerga; para o filho do estrangeiro nascido no Brasil, o ideal estava na origem europeia dos seus pais, que era valorizada. Mas essa origem lhe será negada fora do Brasil; são hoje lembrados de que são brasileiros pelos serviços de imigração dos países de seus pais.

Assim o brasileiro branco filho de imigrantes europeus é um apátrida; aprende na escola que é preto e índio, ouve no rádio, vê na televisão, lê em livros e revista que sendo brasileiro ele é preto e índio, mas recebeu de seus pais a missão social de embranquecer o Brasil, assim não pode se identificar com o Brasil inferior, preto e índio; ocorre que nascido no Brasil, passa a ser um “sulamericano”, um “não-europeu”, na Europa vista por ele como sua origem superior.

Com os filhos dos migrantes nascidos em São Paulo ocorre o oposto, realmente são paulistas, mas têm negada sua naturalidade – são os “baianos”.

O mesmo vale para o negro; esse só pode ser negro.

Assim, o branco paulista, na sua origem mestiça e na sua formação multicultural, vive um dilema primordial: é negado pelo que quer ser, nega ser o que realmente é.

O Brasil dos brancos: a negação como formadora da identidade sociopolítica.

É possível estender essa mesma abordagem para explicar um “Brasil dos brancos”.

A partir dos anos 90 do século vinte, mudam as condicionantes sociológicas que faziam o brasileiro branco imaginar-se como negro: a derrocada dos ideais socialistas – a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética – implanta uma crise de valores na intelectualidade, e logo, uma crise na identidade forjada por essa intelectualidade que apresentava o Brasil como um país singular em sua cultura negra e indígena.

Interessante notar, no entanto, que ao mesmo tempo em que o branco brasileiro não tem mais as condicionantes que o faziam identificar e valorizar a sua pátria como índia e negra, os índios e negros começam a se identificar como o que realmente são: índios e negros.

Note-se que nos anos 90 do século passado, no mundo como um todo, o sucesso é branco, “ocidental” – o neoliberalismo e a globalização – e não há mais o contraponto do idealismo social ou metafísico; porém, o modelo branco faliu no Brasil, os governos Collor e FHC – figuras essencialmente do imaginário social branco brasileiro – resultam em fracassos.

O branco brasileiro está na contramão da história, e passa então a buscar outra vez no estrangeiro o seu ideal. E pela primeira vez o brasileiro, e o brasileiro branco em particular, emigra para buscar melhores condições de vida em outros países – até então, o Brasil era um país que recebia imigrantes. Mas, no país de seus pais, ou no seu modelo de sucesso idealizado – os EEUU, esse brasileiro branco tem negada a sua identidade e é tratado como no Brasil ele trata os negros e os nordestinos: o brasileiro branco descobre que não é branco fora do Brasil.

O branco brasileiro está agora na condição do paulista mameluco seiscentista: o que ele quer ser lhe nega reconhecimento, e ele nega o que realmente é. E como o paulista mameluco, a negação pelo modelo não o revolta; antes, o torna subserviente a esse modelo, busca-lhe a aceitação.

E nessa busca, acaba por forjar uma identidade pela negação. No Brasil, ele passa a se enxergar como o “não negro e o não pobre”; ou em São Paulo, ele é o “não negro e o não nordestino”.

E, mais uma vez, a negação será a sua forma de se posicionar na sociedade.

Como que a reforçar essa identificação pela negação, a chegada de Lula ao poder passa a promover o progresso exatamente das camadas sociais que o branco brasileiro passou a negar – os negros, os pobres e os nordestinos. Os governos Lula são bem sucedidos, com notável progresso social e econômico – após a crise mundial de 2008, o Brasil chega a superar a Inglaterra e se torna a 6ª economia do mundo. Mas Lula não é identificado com o Brasil dos brancos; e assim, o branco brasileiro não pode se identificar com o sucesso desse momento brasileiro, ainda que dele se beneficie.

Essa noção de não pertencimento ao grupo que está obtendo progresso leva-o, pela primeira vez, a sentir ameaçado o seu senso de superioridade. E essa pretensa superioridade era o fator que lhe dava a segurança para assumir a identidade de índio e negro – “mas como a cor não pega, mulata; mulata, eu quero o teu amor”.

É essa insegurança e a crise de identidade, ou de identidade formada pela negação que explicam o ódio ao “inimigo petista”. Explica também porque mesmo a classe-média-baixa nutre esse ódio. A rejeição não se dá por classe econômica, e sim pelo sentimento de filiação à identidade de “não negro e não pobre”. Os pequenos burgueses no Brasil estão muito mais próximos dos pobres do que da classe média consolidada; mas, assim como não se identificam como negros, negam a proximidade social com os pobres.

Isso explica também o porquê da sensação de uma nação dividida ao meio. Como nos traz o professor Luís Cláudio Vellafañe G.Santos: uma nação é uma comunidade imaginada. Imaginada porque, sem considerar a desigualdade e exploração que nela possam existir, a nação é sempre concebida com um companheirismo profundo e horizontal – em última análise, uma fraternidade. Os brancos brasileiros não têm, neste momento, como se identificarem fraternos a todos os outros brasileiros, pois sua identidade de “não negros e não pobres” é excludente. Assim, seu Brasil – o Brasil dos brancos – é excludente também.

Negros manifestação Marcelo de Franceschi
Manifestação em Santa Maria – RS em 2013

Sintomático dessa excludência e negação é o uso da camisa da seleção brasileira como identificação grupal associada à brasilidade branca. O professor Luís Cláudio Vellafañe postula que nossa noção de brasilidade moderna foi construída em torno de dois traços identitários: o futebol e o samba. A escolha da camisa da seleção de futebol, portanto, não é aleatória; no subconsciente coletivo dos brancos brasileiros, representa a única irmandade imaginada a qual podem pertencer na condição de brancos. O samba, a outra das nossas referências identitárias, continua sendo “coisa de preto”.

A partir das manifestações de 2013, a seleção brasileira de futebol já foi odiada e amada segundo o quanto o sucesso dela pudesse ser associado ao PT ou apropriado pela nossa classe média – característica da parcela branca da nossa população.

Quando a realização da Copa do Mundo no Brasil podia ser associada com o sucesso dos governos petistas, o grito de guerra – literalmente – dos brancos era: “não vai ter Copa”. 

Manifestação na Copa do Mundo de Futebol no Brasil em 2014

Já, com Copa do Mundo no Brasil em andamento e com os estádios de futebol, que selecionavam o público pelo preço dos ingressos, coloridos majoritariamente branco, o sentimento de grupo fez com que o “Não vai ter Copa” fosse sucedido pelo Hino Nacional gritado a capela junto com o “Dilma, vá tomar no cu”. 

E mais, o amarelo da camisa da seleção é utilizado para se contrapor à simbologia política contida no vermelho da bandeira do PT, e assim negar aos simpatizantes deste – ou a qualquer associação com a esquerda –  a condição de brasileiros; pelo menos do Brasil dos brancos. Vermelho são os outros, pois “a bandeira do Brasil nunca será vermelha”; mais uma vez, a nação excludente e negacionista. Simbolicamente, se apossaram de um país só para si – o Brasil dos brancos… verde e amarelo; aos outros – vermelhos e negros: “vai para Cuba”.

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Protesto pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff no Rio de Janeiro em 2016

O risco, neste instante, é a manipulação de tais sentimentos de exclusão, e sua instrumentalização em forma de violência contra um “inimigo” também imaginado. Não foi isso que vimos impregnado nas manifestações pela deposição da presidente Dilma, e que nos assustou tanto? Até porque, como nos ensinou o professor Darcy Ribeiro sobre a casa grande e a senzala; e sobre o pelourinho, que regulava a relação entre elas: “a mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista”.

O Brasil se encontra diante de um desafio, quase um paradoxo grego: precisa reconstruir uma identidade nacional que possa ser compartilhada por todos, inclusive pelos brasileiros brancos; mas o Brasil sempre foi o que a parcela branca do povo brasileiro imaginou ser, e essa mesma parcela encontra se em crise; pois, não se enxergando mais como negra, busca na negação se encontrar com o que é: brasileiros; o que, em mais 500 anos, só conseguiu ser quando se quis como índios ou negros.

12 comentários

  1. Este texto é uma enxurrada de prerrogativas que o autor atribui como verdades fundamentadas. O que demonstra que apenas citar nomes sonantes não valida o conteúdo do que se escreve. O que o prezado autor, ou autora, possui que determine a postulação de um conhecimento absoluto do que ocorre com, digamos, os brasileiros de cor branca em outros países? Ou os absurdos desvarios do PT seriam os imaginários estados emocionais dos brasileiros brancos em crise de identidade? O autor poderia simplesmente afirmar, de forma mais humilde, que estes pensamentos expressos correspondem á sua opinião, ou visão particular, que pode ser influenciada por inúmeros fatores.
    Mas da maneira que foi apresentado, apenas é uma forma como o autor imagina o que seriam os brasileiros brancos, ou o seu desejo a respeito disso. E neste caso, é demonstrado um sentimento de desagrado ao elemento branco da população brasileira ( Porque tal elemento existe realmente, e não é de alguma forma mameluco em sua totalidade, como é sugerido de um modo indireto).
    E, queira o autor acreditar ou não, este elemento é o fator de desenvolvimento, civilidade e cidadania no Brasil. Ou talvez ao autor do texto lhe apraz o canibalismo, as atividades tribais e primitivas de outras sociedades, tais como a negra e a índia que constituíram, mas somente ajudaram o país em termos de densidade demográfica. Festividades , mesmo as importadas da Europa, como o carnaval, pouco contribuem para o desenvolvimento de uma sociedade. Quando se trata dos valores fundamentais, tais como habilitações e valores familiares e tradicionais democráticos, são os brancos excludentes que lutam e lutaram.
    Inclusive estes brancos excludentes que formam a classe média são os que financiam a maioria dos programas de iserção social e afirmação econômica das minorias-que afinal não são minorias, através de impostos.

  2. Sergio, estupefata.

    Me escapou completamente que em sendo “branca” (nem tanto!!!)  seja eu responsável pela civilidade, desenvolvimento e cidadania da Nação, já que quem não é (branco) só serve para reproduzir…

    Que responsa, meu!!!! 

    Quero deixar registrado que não tive filhos por não ter encontrado quem eu considerasse um companheiro viável. E que esta escolha nada teve de “cromática”.

    Ossos do ofício: pena afiada faz acusarem o golpe. E não importa quanto tempo tenha se passado. Faz parte.

    Parabéns. Belo post. Compartilhado.

    Um abraço.

  3. Sérgio

    Escrevo-lhe para consertar a expressão de sua lavra “identidade sócio-política”. A palavra “Sócio” significa alguém que com outro ou outros toma parte na exploração de um negócio. Então, o que isso tem a ver com a questão das identidades raciais? Nada, né ! O sentido de “Sócio-política” não existe, sua significação é absurda.

    Esse erro já no título de seu artigo compromete o seu conteúdo, já por si só deprimente.

    Faça o seguinte: em vez de escrever “sócio-política”, escreva “sociopolítica” (sem o acento em “socio” e sem o hífen). Assim: “identidade sociopolítica”. E pronto!

    Agora o seu texto continuará deprimente do ponto de vista etnopolítico, mas a gramática dele não será mais “coisa de preto”.

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