Vivemos uma época em que o sal da terra causa hipertensão e a luz do mundo provoca câncer de pele.
Bloqueadores solares, antiansiolíticos e uma tomada de energia para recarregar as baterias de lítio. Oásis e paraísos artificiais.
Dos campos do senhor, as pragas nos alimentam de maldições e nos fartamos com seus gafanhotos. O leite sem lactose, o café sem cafeína e a cerveja sem álcool. A gordura deve ser magra e a alface que não é orgânica tampouco é mineral, sintética ou de origem animal.
A essência das coisas nos é prejudicial.
Certezas da idade da pedra e a era da incerteza da razão. Fé no iluminismo da escuridão. Um Jesus para cada um e ninguém para Cristo. Protestantes a favor e a reforma do retrocesso. Ata o ateu à estaca. Fogo. E os ricos em seus camelos atravessando o buraco da agulha como um trem sob o Canal da Mancha.
O direito ao descanso é inconstitucional. O deus do sétimo dia é passivo trabalhista. O bem-estar da população deprime a saúde das contas públicas. Por contenção de custos, cancelou-se a próxima campanha de vacinação. Não cabem todos no meu país. Não cabemos todos no mundo. E correm por aí muitos refugiados sem refúgio e muitas correntes de apoio e mensagens de ódio.
Não temos mais heróis. Do rebelde sem causa a causa nenhuma. Somos todos arreios sem ninguém para cavalgar-nos a esperança. Mas todos indignados com as últimas notícias. Há um salvador da pátria a cada manhã e um corrupto a cada amanhã. O sonho acabou e você pode até dizer que eu sou um tolo, mas eu não o único.
Mortos a tiros os que buscaram endurecer sem perder a ternura. Jamais. Ternura, não mais. E as privadas de Miami continuam cagando nas praias de Havana. As do Leblon vão bater na Favela da Maré e da Paulista flutua merda no Jardim Pantanal. Cagamos nas cabeças dos cadáveres que boiam no Mediterrâneo.
Ninguém me representa. E tudo que é sólido se desmancha no ar. A verdade é a ilusão em que eu queira acreditar.
Nunca correu tanto o sangue do inimigo e nunca tivemos tanto medo. Judiaria. O condomínio fechado e a comunidade virtual – os cercadinhos VIP da cidadania. A cripta profanada e o arquivo criptografado. Virótico e viral.
A eternidade por quinze minutos – a duração de uma pedra. O tempo do opróbio e o da fama são iguais e passageiros. Tudo mais é cobrador ou motorneiro – efêmero e incerto como a morte anunciada. Nada mais é clássico. Mas tudo é padronizado. Somos individualistas que odeiam a singularidade.
Repercutimos obviedades de internet e não há mais lugar para frases cifradas. O mistério em desencanto. Suzana escura e o celacanto. Nos muros, mais nenhum espanto. Tudo cinza. Lanço mensagens em garrafas no info-mar. Empino minha pipa no ciberespaço. Continuam ridículas todas as cartas de amor.
Nas academias, não mais discutimos poesia ou filosofia, mas nelas nos submetemos a trabalhos análogos à escravidão. Até a exaustão do corpo sarado, mas não exatamente são. Do suor do rosto não há pão. Não há corpo são sem a mente sanada. Narcisismo, evasão de privacidade e obsessão. A sedução saiu de moda. Faço pose para a câmera de segurança. Espelho-me no elevador.
Nunca fomos tão felizes. A cada aniversário uma mensagem no meu telefone celular e muitas fotos sorridentes de pessoas que eu não sei quem são. Amigos imaginários da maioridade. Redes nas janelas para o mundo. O social e o comunitário vagando nas nuvens. Mais das vezes estamos sós. As repostas ao vento ainda estão desconectadas. Mas as dúvidas de uma geração ganham o prêmio Nobel de Literatura.
A solidariedade tornou-se crime, o amor é escandalizado e a loucura é caso de polícia. Os loucos já não podem mais morrer em paz. Insanos tomaram o poder e restaram proibidos os poemas loucos, os poetas poucos e os amores enlouquecidos.
Agora, trepamos com camisinha.
Nem isso.
A dor maior é a dos poemas, poetas e amores.
Louca, sucumbi.
Fora eu a Rainha do Castelo ordenaria, bardo, à tua lira o preparo do Réquiem.
Profundo seu texto, misto de filosofia, religião, críticas, música, arte. Gostei!