De verdades e mentiras – a “nossa crise” nas páginas da Folha

Como, partindo de uma manipulação de informação, a Folha de São Paulo traça o diagnóstico correto do porquê chegamos ao golpe e aonde vamos com ele.

as botinas do coronel

O editorial de 04 de setembro de 2016 da Folha, ”A crise é nossa”, é uma miscelânea de dados servida ao gosto do mau humor do articulista para com o governo Dilma. Isso para dizer o menos, já que, no mais, trata-se da costumeira manipulação de informação.

Assim, ficamos sabendo que no período entre 2011 e 2015 o Brasil cresceu 5%, mais que a Itália e o Japão. E se o articulista quisesse, poderia lembrar que em 2011 a economia do Brasil havia superado a da Inglaterra. Caso retroagisse o período estudado ao início da crise em 2008, poderia afirmar que o Brasil cresceu, em vários momentos, mais que os EEUU.

Mas, não. O que interessa ao editorial é concluir que isso não interessa. Porque se tratariam de países muito mais ricos do que o Brasil. Logo não comparáveis.

O que interessa ao editorial é que a Austrália, também chamada de rica, cresceu 14% no mesmo período, a Turquia 24% e a paupérrima Indonésia 31%. Sim, isso interessa. E por que agora interessaria? Porque provaria que o governo Dilma foi uma tragédia para a economia do país.

E por aí vai:

“A renda per capita da Colômbia cresceu 19% de 2011 a 2015. Nesse período, no Brasil presidido por Dilma Rousseff (PT), o crescimento foi de 0,1%. No Peru e no Paraguai, 18%. No Uruguai, 17%. Nossas agruras são, na maior parte, derivadas de uma política interna tão irresponsável quanto mal formulada, agravada por favores estatais e fraudes. Não há crise mundial para desculpá-las”.

Tolices. Escolhem se os dados favoráveis aos argumentos, desprezam-se os desfavoráveis.

Até porque o crescimento econômico é um índice enganoso se não sabemos quem se apropriou dos resultados desse crescimento, se a sociedade como um todo ou apenas a elite rentista.

Em 2014, por exemplo, o Brasil apresentava um quadro de pleno emprego, com um índice de desemprego de apenas 4,3% em dezembro. Além de um crescimento de 28% dos rendimentos do trabalho no período desde 2005.

O que, não por coincidência, parece escapar ao editorial é o ponto de viragem ocorrido entre 2014 e 2015 quando o Brasil mergulha em uma retração econômica de menos 3,8% em um só ano.

Fruto mal da má administração do governo Dilma?

Resultado econômico da guerrilha política que se instalou no país com 4ª vitória consecutiva do PT nas eleições presidenciais. Da insubordinação burguesa aos resultados das urnas, da ruptura do pacto democrático de 1988 capitaneada pelo poder econômico apoiado pelo Poder Judiciário insurreto e pela mídia golpista.

Quisesse comparações, o editorial deveria fazê-las com o Egito e a Síria que também viveram suas “primaveras” ou com Honduras e Paraguai que sofreram o mesmo tipo golpe. Não lhe interessou, por razões óbvias.

Poderia buscar paralelos com a Venezuela, tantas vezes fizeram isso. Bastaria ir algumas páginas adiante na mesma edição, onde um Clovis Rossi sem noção pede que o governo golpista do Brasil ajude a derrubar o governo democraticamente eleito de Nicolás Maduro.

“… já que a Venezuela se meteu em assuntos internos brasileiros ao considerar ilegítima decisão soberana do Congresso Nacional, é hora de o Brasil reagir e pôr pressão para tentar salvar a Venezuela de um fracasso que, com Maduro, só se acentuará”.

Mas o editorial não se atreve a tanto. Fizesse e revelaria as razões de um governo frágil como o de Maduro estar em pé e o de Dilma ter sido derrubado. E nada tem a ver com a maior ou menor capacidade de gestão econômica. Está lá, com todas as letras e com todo o descuido que a arrogância dos vencedores permitiu a Rossi:

“No Brasil, o governo do PT, tantas vezes equiparado ao bolivarianismo, não mexeu um dedo para dificultar a mobilização pró-impeachment. Na Venezuela, ao contrário, o governo foi ao extremo… Exatamente pela truculência do governo venezuelano, é pouco razoável esperar que as marchas contribuam na Venezuela para o desenlace aqui ocorrido, ou seja, o afastamento do presidente de turno”.

Claro, truculento sempre são os outros. A repressão do governo golpista que tomou o poder no Brasil ao “Fora Temer” é puro exercício democrático. Temer não é um idiota, sabe tão bem quanto Rossi e quanto o editorialista qual foi o grande erro do governo Dilma:

“Se o “conjunto da obra” acabou sendo o real motivo para decapitar Dilma, Maduro merece muito mais a defenestração. Mas, ao contrário da então mandatária brasileira, que seguiu as regras do jogo, Maduro transformou seu país em uma “democracia autoritária”, …”

O texto de Rossi vale pelo sarcasmo e pela aula de realpolitik. Por seguir as “regras do jogo”, Dilma foi decapitada pelo “conjunto da obra”. Esse foi seu “crime de responsabilidade”.

É disso que o editorial não trata.

Como não trata do que é, a partir do “Golpe de agosto de 16”, a nossa verdadeira crise – a ilegitimidade do governo usurpador de Michel Temer. A Folha, no entanto, sabe que esse é o assunto que interessa. E nesse sentido, a análise de Matias Spektor na própria Folha não deixa dúvidas.

“O Palácio do Planalto calculou que a estreia internacional de Michel Temer seria um divisor de águas entre o interinado e o exercício pleno da Presidência. Os fatos atrapalharam a estratégia. Enquanto Henrique Meirelles dizia a empresários em Xangai que o país é “seguro e estável” e não há “conflitos políticos”, o noticiário chinês mostrava confrontos nas ruas paulistanas.

Os dois desafios imediatos são as viagens de Temer à Argentina e aos Estados Unidos. Mauricio Macri é simpático… mas a tese do golpe ganhou adeptos em setores do partido Democrata, hoje preferido para as eleições de novembro. Não será um editorial elogioso a Temer do “Wall Street Journal” que vai abrir bons canais de comunicação e espaço para atuação de alto nível junto a um possível governo de Hillary Clinton.

O palácio será forçado a reajustar sua mensagem”.

Matias Spektor sabe tão bem quanto o editorialista da Folha que “o embate por legitimar, lá fora, a novela que se passa aqui dentro, não terminou. Apenas começou”.

Sim, Matias usa o termo correto, o impeachment é uma “novela”, uma obra de ficção. E Matias não esconde quais são os trunfos de Temer para se “legitimar lá fora”:

“… Maria Sílvia (BNDES) e Pedro Parente (Petrobras)… eles talharam uma mensagem de modernidade ao reestruturar duas das principais instituições de todo o mundo em desenvolvimento”.

Sim, conhecemos essa “mensagem de modernidade” desde o famigerado governo FHC: o dinheiro do BNDES financiando a privatização do pré-sal.

Poderosos trunfos, enquanto houver riquezas a serem sugadas no curto prazo, darão legitimidade e estabilidade ainda que temporária ao governo usurpador de Michel Temer, como deram aos governos FHC. Mas não o suficiente para evitar uma nova crise, como não a evitaram com FHC igualmente.

No entanto, a crise que se prenuncia com Temer é muito maior do que a de FHC. FHC foi um governo entreguista, mas legitimamente eleito e reeleito pelo povo. E legitimamente sucedido por Lula. Tal não é mais permitido pela oligarquia que, pela figura interposta de Temer, assumiu o poder no Brasil. O que coloca o Brasil no beco sem saída das eleições de 2018 que não podem ocorrer seguindo as regras atuais.

A oligarquia de hoje é a mesma da República Velha. E essa governou por 30 anos até ser derrubada em uma revolução. É para onde nos encaminhamos.

Essa é a nossa eterna crise da qual o editorial da Folha não trata:  “elites locais predatórias, econômica, política e intelectualmente alienadas, associadas de forma subordinada às elites dos países ricos, notadamente os EEUU, e incapazes de unidas a seu povo se constituir como nação”.

A Folha sabe bem disso, essa é a formulação do professor Bresser-Pereira para a nossa maldição –  a “teoria da dependência”.

Ocorre que, sendo a Folha uma representante dessa mesma elite, preferiu desconhecer o diagnóstico de seu antigo colunista e dizer mais uma vez em um editorial que a “culpa é de Dilma”, enquanto, para quem soubesse lê-la, se desdizia em suas próprias folhas.

 

 

 

 

1 comentário

Deixe um comentário