O golpe de Estado e o estado de golpe

Teria a sanha golpista do antipetismo criado um mecanismo autofágico para um permanente estado de golpe?

“A Câmara dos Deputados começou a abrir caminho para o julgamento das contas de 2014 do governo Dilma Rousseff… Os auditores do TCU apontaram várias irregularidades… e tudo indica que o tribunal recomendará ao Congresso sua rejeição em agosto. Se a recomendação do tribunal for seguida pelos parlamentares, qualquer cidadão poderá usar a reprovação das contas como justificativa para pedir à Câmara o impeachment de Dilma…”.

Lendo a matéria da Folha de 12jul2015 parece que estamos, como se tornou comum desde o dia 27 de outubro de 2014, mais uma vez, às vésperas do golpe institucional que irá retirar Dilma Rousseff do poder.

Nada mais verdadeiro e nada mais falso.

Realmente, a Lei Complementar 101/2000 – a lei de responsabilidade fiscal, que seria utilizada, segundo a Folha, pelo TCU – Tribunal de Contas da União para recomendar a rejeição das contas de 2014 do governo Dilma, determina punições inclusive pela Lei 1079/50 – a lei do impeachment. E a lei do impeachment permite a qualquer cidadão apresentar perante a Câmara dos Deputados uma denúncia contra a Presidência da República.

Daí a que a denúncia possa ser aceita vai uma grande distância.

Abaixo veremos a necessidade para a estabilidade da governança de discutirmos se “pedaladas” – haja criatividade para a novilíngua da mídia de oposição, consideradas indevidas são de responsabilidade da Presidente, do Ministro da Fazenda ou do Secretário do Tesouro. É necessário que exista responsabilidade definida pelo ato condenável que dá causa ao processo de impeachment. Não é por menos que a lei não cita a cassação de mandato do vice-presidente da República. Vice-presidente só tem autoridade de facto, e, logo, responsabilidade, quando está presidente em exercício.

Mas, neste ponto, parece-me mais oportuno discutirmos o calendário.

O artigo 15 da Lei 1079/50 não deixa dúvidas: “a denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo”.

E o motivo desse artigo não é apenas o óbvio de que não se pode cassar mandato que já não exista. Como a condenação produz efeitos para além da perda do mandato, inabilita o condenado para exercício de função pública posterior à condenação, tal artigo tem o objetivo de proteger o presidente de perseguição política, promovida no Legislativo, após o término de seu mandato.

E, a menos que eu tenha perdido algo muito importante nessa discussão, as contas de 2014 do governo Dilma referem-se ao mandato que se encerrou em 31 de dezembro daquele ano. E o atual mandato da presidente não guarda relação com o anterior, muito menos é extensão dele. Se o continua, é porque Dilma venceu uma nova eleição. O Presidente poderia ser Aécio, mas essa não foi a decisão da maioria dos eleitores. Alguém imaginaria responsabilizar um hipotético Presidente Aécio por atos do finado mandato de Dilma?

Logo, uma denúncia, neste instante, contra o mandato anterior de Dilma não poderia ser aceita com base na Lei 1079/50 e, por via de consequência, não teria o poder de iniciar um processo de impeachment que se aplicasse ao atual mandato.

Vivemos uma quadra em que a letra da lei parece não ter importância.

Já vimos o STF se autoconceder poder para cassar mandatos quando a Constituição diz que só quem tem voto pode fazê-lo. Já vimos Ministros do Supremo afirmar que a literatura jurídica substitui a necessidade de provas para condenação ou que o “domínio do fato” delas prescinde. Temos hoje nas cadeias prisioneiros não julgados cumprindo penas de prisão preventiva, ainda que isso mais seja afeito à teratologia do que ao Código de Processo Penal. E assistimos estarrecidos decisões da Câmara dos Deputados tomadas ao meio-dia com as galerias lotadas serem revistas na calada da noite da madrugada do dia seguinte.

Mesmo assim, parece-me que o artigo 15 da Lei 1079/50 não deixa margem para qualquer interpretação feita de boa fé.

Vejamos, então, 2014 não tira o mandato de Dilma. Mas 2015 sim. E 2016 e …

Teríamos criado o mecanismo para um golpe de Estado oriundo de um permanente estado de golpe?

A Lei Complementar 101/2000 é bastante extensa e o governo federal complexo o suficiente para que relatores do TCU que não se pejem em emitir pareceres usando verbos no futuro do pretérito possam recomendar a rejeição da mais pura das prestações de contas. Um desafeto na presidência da Câmara dos Deputados completaria o estrago.

Mas poderíamos responsabilizar a Presidência da República por quaisquer dos atos administrativos do governo que fossem considerados para a rejeição das contas?

Não creio.

Responsabilização com o sentido de culpabilidade exige ato com nome e número de documento definidos.

Por mais que algumas pessoas, incluindo de jornalista a juízes, pareçam acreditar que os artigos das leis não necessitam ser aplicados na sua íntegra quando se trata de atribuir culpa ao PT, a se admitir a possibilidade da aplicação combinada da Lei Complementar 101/2000 com a Lei 1079/50 sem a necessária individualização das responsabilidades, não haveria, a partir de então, mandato presidencial que durasse mais de um ano sem sofrer um pedido de impeachment, fosse ele do PT ou de qualquer outro partido que assumisse a presidência.

Claro está que nada é tão automático assim. A Lei que prevê a denúncia também prevê a necessidade de provas e a análise da validade dessas provas como condição para a aceitação ou não da denúncia. Prevê, como salvaguarda, que a Câmara dos Deputados decida pela aceitação da denúncia, mas que o julgamento seja feito pelo Senado, diligências, acusação e defesa. Isso tudo com a participação de todos os partidos representados no Congresso.

Mas qual o custo da instabilidade permanente de um impensável processo autofágico onde a oposição aplicaria no governo de hoje um golpe com o qual seria golpeada amanhã quando os papeis se invertessem?

Algo tão insólito que a sua simples cogitação já o torna um tema sobre o qual deverá ser estabelecido consenso se queremos o aperfeiçoamento institucional da nossa democracia.

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